Dr. Stu: “Podemos estar a alterar a espécie humana ao interferir tanto no Parto”

 

Dr. Stuart Fischbein, reconhecido ginecologista e obstetra a nível mundial, é especialista em partos pélvicos e de gémeos, duas “artes” no nascimento que se estão a perder para a crescente taxa de cesarianas.

Conhecido como Dr. Stu, o famoso médico Obstetra foi percebendo, ao longo da carreira num hospital de Los Angeles, que esse ‘negócio’ não era rentável, nem para seguradoras nem para os hospitais. Afirma ter sofrido bullying e sente que, agora, no meio das parteiras, faz finalmente aquilo que gosta.

Dr. Stu vem a Portugal para participar na Conferência “Nascer em Amor”, a 19 de Maio, organizada pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) sob o tema ‘Menos interferência, mais cuidados’ e enfoque especial em ‘Partos excepcionais’, aqueles que fazem a excepção à regra, como o parto de gémeos, vaginal após cesariana, de bebés em posição pélvica e partos para além das 42 semanas.

Dr. Stu vai também dar formação em dois hospitais portugueses: no Hospital Garcia de Orta, em Almada, e no Centro Hospitalar de Póvoa de Varzim-Vila do Conde. Aos seus futuros alunos, o Obstetra vai já desmistificando o facto de vir ao mundo de rabo: “Quero dizer aos meus formandos que há muitas evidências sobre o parto pélvico que suportam o direito da mulher a ter um parto pélvico vaginal.”

Em entrevista à APDMGP confessou ainda que inicialmente se riu da possibilidade de começar a assistir a partos domiciliares, mas quando finalmente o fez admitiu: “Foi a melhor experiência da minha vida! Desde então, tenho estado sempre feliz com esta minha escolha e a única coisa que me entristece é ser o único a fazê-lo.”

Falámos com o Dr. Stu para perceber melhor este seu percurso peculiar e saber mais sobre a sua visita a Portugal.

Entrevista de Laura Ramos — Carteira Profissional de Jornalista nº 3404
com Isabel Valente, Mariana Torres e Sara do Vale

 

A forma como se nasce mudou muito nas últimas décadas. Na sua opinião, quais foram as principais mudanças e que implicações têm no futuro da humanidade?

Esta pergunta é a entrevista inteira? Porque eu provavelmente poderia ficar meia hora só nesta questão!… (risos). Bem, as principais mudanças são a medicalização do parto. Em 1971, a taxa de cesariana nos Estados Unidos era de 5% e agora é de 30%, ou seja, houve um aumento de 500% na taxa de cesarianas. Agora, se houvesse uma melhoria significativa nos resultados neonatais, talvez pudéssemos dizer “Está bem, mas isso trouxe-nos alguns benefícios”, mas, por exemplo, houve zero melhorias na taxa de paralisia cerebral nos EUA nas últimas décadas. E relativamente às mortes neonatais, as coisas até pioraram, apesar desse aumento nas cesarianas. Então, a principal mudança foi este aumento da taxa de cesarianas e a diminuição das opções que se dão às pessoas, a dependência de tecnologia. Na minha opinião, podemos falar de dois factores específicos. Um deles é o advento do monitorização fetal contínua, que começou no início dos anos 70, exactamente no momento em que a taxa de cesariana começou a subir. Apostou-se na ideia de que se observássemos a frequência cardíaca do bebé ao longo do trabalho de parto poderíamos aperceber-nos dos riscos mais cedo e então poderíamos intervir e obter melhores resultados. Foi uma bonita teoria, que infelizmente foi colocada em prática universal antes de ser testada. Então agora temos mulheres que são “amarradas” à cama, o que interfere com várias coisas relativamente ao trabalho de parto, desde o seu funcionamento à confiança da mulher, a sua capacidade de se mover livremente, de estar activa, de lidar com a dor e assim ajudar o seu bebé. Tudo porque tem de estar agarrada à monitorização, e muitos hospitais ainda o fazem. Mas muitos, também, estão a adoptar políticas mais tolerantes em relação a isto e as mulheres estão a ter a liberdade de fazer mais daquilo que nós, no mundo da obstetrícia, sabemos ser útil para o parto.

A outra coisa que contribuiu para o aumento da taxa de cesarianas foi o advento da curva de Friedman, proposta por Emmanuel Friedman, e sabem, no final da sua vida ele admitiu arrepender-se de o ter feito. Basicamente, o que dizia é que todas as mulheres deveriam dilatar a um certo ritmo e se não o fizessem, quer fossem primíparas ou multíparas, era necessário intervir. Então, as mulheres em trabalho de parto ficaram sujeitas a exames vaginais de hora a hora, ou de duas em duas horas, e se o colo do útero não evoluir pelo menos um centímetro a cada hora é preciso intervir: romper as membranas ou iniciar oxitocina artificial, ou seja, todas aquelas coisas que desencadeiam o que chamamos a ‘cascata de intervenções’ e que levam à epidural, aceleração artificial do trabalho de parto e por consequência a um aumento das cesarianas.

Quanto ao futuro da humanidade, há muitas coisas que eu não posso provar e não quero ser acusado de fazer declarações de algo que não foi provado, mas sabemos que os bebés nascidos por cesariana têm maiores taxas de asma na infância, diabetes, não exponencialmente maiores, mas significativo o suficiente para ser a longo prazo. Haverá mais doenças na infância por falta de exposição às bactérias vaginais e hoje já sabemos o quão importante é a microbiota. No entanto, muitos, muitos hospitais ainda ignoram tudo isso, ainda esterilizam a vagina da mulher antes da expulsão e cobrem-na com panos esterilizados, o que é realmente pateta. Não faz nenhum sentido fazer-se isso, mas é porque estes profissionais foram treinados no modelo biomédico, que vê o parto como uma cirurgia e não como uma função natural do corpo. É como se esterilizasses a tua uretra sempre que urinasses e claro, ninguém faz isso. Estamos a destruir a microbiota e que efeito é que isso terá no futuro? Eu não sei, haverá mais doenças em crianças? Mais obesidade? Mais autismo? Podemos apenas especular sobre estas coisas. Há pessoas boas, como o Michel Odent, que acreditam que essas coisas vão causar algum tipo de mudança a longo prazo. Outra questão importante é a epigenética de todo este processo, que confesso que não é uma área com a qual eu esteja muito familiarizado, mas sabemos que o corpo é passível de ser modificado e influenciado. Diz-se que as bebés que nascem de cesariana sem trabalho de parto podem vir a ter mais dificuldade em, elas próprias, entrarem em trabalho de parto no futuro, porque não desenvolveram os receptores de oxitocina correctamente ou algo que a ciência ainda não consegue explicar. O facto é que podemos estar a alterar a espécie humana ao interferirmos tanto.

Hoje em dia, uma cesariana anterior, gémeos ou um bebé em posição pélvica são indicações para cesariana, pelo menos em Portugal. De que forma tenta fazer a diferença, oferecendo às mulheres partos vaginais nestes casos?

Felizmente, formei-me numa era em que o Parto Vaginal Após Cesariana (VBAC), Pélvicos e Gémeos não eram considerados cesarianas automáticas. Tive essa sorte. E tive a sorte de, enquanto fui interno, passar quatro meses naquele que na época era o hospital mais movimentado dos Estados Unidos. Fazíamos cerca de 22 mil partos por ano, o que perfaz cerca de 65 nascimentos por dia. A equipa de internos era constituída por 12 pessoas e o director do hospital ficava no seu gabinete, nunca saía, os especialistas recém-formados é que faziam todas as cesarianas, os internos faziam todos os partos vaginais e os estudantes de medicina eram os que tiravam sangue e preenchiam o historial das pacientes. Acompanhávamos partos pélvicos, fazíamos extracções pélvicas, foi uma era diferente, e infelizmente esse tipo de formação desapareceu. Hoje é mais difícil os profissionais conseguirem ter a formação necessária para acompanhar gémeos que estejam bem posicionados e os bebés pélvicos agora são tabu, apesar da evidência e da literatura mundial suportar a opção de parto pélvico vaginal e parto de gémeos, mesmo quando o gémeo A está pélvico. Mas actualmente nunca teríamos essa informação da maior parte dos médicos, pois tendem a seleccionar os dados que mais lhes convêm e esta dissonância cognitiva perpetua-se, pois deste modo não são obrigados a oferecer essas opções às mulheres que acompanham. Mas essa é a nossa obrigação ética, é oferecer opções razoáveis. Até mesmo o Colégio Americano de OBGYNs, o RCOG, e as entidades equivalentes na Nova Zelândia e Austrália têm declarações que apoiam nascimentos vaginais de pélvicos e gémeos em utentes selecionadas e com profissionais qualificados, mas depois rematam com a afirmação de que encontrar um profissional devidamente habilitado a fazer estes acompanhamentos será difícil e assim as cesarianas continuam a ser a norma. O problema com essas pessoas na Academia é que fazem declarações como estas, e não estão a ensinar a próxima geração de médicos obstetras a serem profissionais habilitados e experientes. Eu tenho a sorte de ainda poder fazer todas as coisas que sei fazer. E sinto que essas competências são importantes, porque mesmo que um médico não saiba como acompanhar um parto pélvico, a sua obrigação ética deve ser dizer a essa mulher: “Há pessoas na minha comunidade que sabem como acompanhá-la, recomendo que tenha uma consulta com este colega e depois venha ter comigo outra vez e falaremos do que pretende fazer”. Em vez de dizer: “Ah, se tiver um parto vaginal pélvico a cabeça pode ficar presa e o bebé ficará com danos cerebrais, vamos antes marcar a sua cesariana para as 38 semanas.” Alguns médicos só dão um lado da história e isso é algo que não devemos fazer nesta profissão. Uma das coisas que tento fazer quando ensino, escrevo e quando faço os meus podcasts, é deixar claro que ninguém é incompetente ou fraco ao admitir a uma utente que não sabe fazer algo. É corajoso dizer-se a uma mulher “Ouça, eu não acompanho partos pélvicos mas aquele meu colega sim, vá ter com ele.” Não fazermos isso é não agirmos de forma ética. E os médicos são esmagados pelo sistema, pelo menos nos EUA, entre conveniência e preocupações económicas e jurídicas, e quem se manifestar contra, como eu e alguns dos meus colegas, acontece como aquele velho provérbio japonês: “O que se faz com um prego que sobressai? Martela-se para baixo!” Os médicos que falam contra a política do hospital ou contra a sua gestão do risco tornam-se um alvo e por isso acabam por manter a cabeça baixa, para ganharem a vida e voltarem calmamente à noite para as suas famílias, e não lutam pelo que é certo. E eu não os culpo, é muito difícil, principalmente se estivermos sozinhos nessa luta.

Porque é que os profissionais de saúde têm tanto medo de permitir que o parto pélvico inicie fisiologicamente? Quais são os principais riscos?

Não há grande habilidade em deixar o trabalho de parto iniciar de uma forma fisiológica, é apenas inconveniente. Principalmente se estão a planear fazer uma cesariana de qualquer das formas. Quero dizer, o que é melhor? Fazer uma cesariana às 7:30 da manhã numa terça-feira, ou fazê-la às 2:00 da manhã de um sábado? E a razão que dão às pessoas é que um pé pode sair, ou o cordão prolapsar, mas se tiveres feito uma ecografia num pélvico e as nádegas estiverem apoiadas na pélvis, não há nenhuma forma que o cordão ou o pé possam vir por ali. Por isso, deixar o trabalho de parto começar, deixar o bebé escolher o seu aniversário, tem vantagens para aquele bebé, mas é inconveniente para a equipa do bloco operatório e obstetra, por isso eles não apoiam este tipo de coisas.

Os riscos de esperar pelo trabalho de parto espontâneo são muito baixos, mas como em tudo, vivemos numa sociedade que é tão baseada no medo que enfatizamos sempre aquela coisinha que pode dar errado. E claro, a partir do momento em que um médico ou outro elemento da equipa tem um mau desfecho, tentam criar procedimentos que garantam sempre um bom desfecho. Assim, restringem a liberdade, as escolhas, e eles nunca aprenderam que, por mais que interfiram, nunca poderão tornar a segurança perfeita. Todos nós sabemos que acontecem bastantes coisas más nos hospitais com protocolos bem rigorosos em termos de segurança, e mesmo assim as coisas más acontecem.

Muitas vezes, o bullying contra fazer as coisas de forma diferente pode não vir de outros obstetras, vem do departamento de anestesia ou de pediatria, que não tem interesse na experiência das mulheres, apenas querem minimizar (ou pensam que estão a minimizar) a sua responsabilidade e, novamente, isso é um pouco cínico, mas eles também estão a aumentar as suas receitas económicas. Qual é o incentivo para um hospital diminuir a sua taxa de cesariana? Até que as companhias de seguros comecem a pagar menos por uma cesariana e mais pelos partos vaginais, não vamos ver nenhuma mudança significativa. Mas veríamos uma mudança significativa amanhã se eles dissessem que iam pagar o dobro por um parto vaginal e metade por uma cesariana. De repente o parto pélvico vaginal e o parto vaginal após cesariana iriam tornar-se óptimas ideias.

Como foi trabalhar num ambiente em que a sua filosofia não era partilhada? O Dr. Stu foi vítima de bullying?

Sim, com certeza. A minha experiência principal com isso foi quando, em 1995, iniciei uma prática colaborativa numa unidade gerida por parteiras, ligada a um hospital, no condado de Ventura, num centro chamado The Woman´s Place (O Lugar da Mulher). Inicialmente tínhamos duas parteiras e eu, como obstetra. O comité do hospital disse que se uma parteira estivesse a acompanhar um parto, tinha de ter um obstetra presente, o que estraga todo o propósito de haver partos acompanhados por parteiras. O que é realmente “interessante” é que se outro médico estivesse a acompanhar um parto no hospital, os outros obstetras podiam estar em casa. Mas quando a casa de partos tinha parteiras altamente qualificadas a acompanhar esse parto, eu tinha de lá estar. Ou seja as nossas clientes tinham duas pessoas qualificadas presentes e as do hospital não. E eles consideravam isso justo. Não havia uma razão lógica para as regras e procedimentos que nos impuseram, eram todas políticas punitivas, o que nós chamávamos de ‘acção disciplinar dissimulada’. Se na casa de partos acontecesse uma clavícula ficar partida num parto, tínhamos um processo disciplinar! Se acontecesse com eles no hospital, não! Lembro-me de, uma vez, o director do serviço ter acabado de levar uma mulher para o bloco para lhe fazer uma cesariana por bebé pélvico. Eu tinha acabado de sair de um parto pélvico. E sei que nunca tinham oferecido a essa mulher a opção de parto vaginal, nem sequer a Versão Cefálica Externa. E quando fez a cesariana, oops!… o bebé estava cefálico! Ou seja, fez-se uma cesariana numa mulher que já tinha tido dois filhos de parto vaginal e a criança nem sequer estava pélvica. Mas não levou a um processo disciplinar, pois tratava-se do Director do Hospital. Essas coisas aconteciam constantemente, uma vez eu fui censurado por usar os uniformes errados, porque trabalhava em mais de um hospital e vim de um para o outro com o uniforme do anterior. Mas no hospital, eles não recebiam acções disciplinares por lacerações de 4º grau ou por tirarem o ovário errado. Havia muito bullying e muitos favores e muita protecção dos amigos. Ao fim de 15 anos, eles fartaram-se de nós, apesar dos nossos bons resultados. A nossa taxa de cesariana era de 7%, aceitávamos qualquer seguradora, as parteiras acompanhavam os partos de baixo risco e eu os que eram considerados de alto risco naquele tempo. E funcionou muito bem! Mas tivemos muitos problemas com o departamento da anestesia, porque as nossas clientes não queriam epidurais, e os pediatras também não gostavam de nós, porque as mulheres queriam ir para casa quatro a seis horas após o parto. O hospital tinha uma política tola, que decretava que todos os bebés recém-nascidos tinham de ser vistos por um pediatra. A propósito, gostava só de fazer aqui um parênteses: a razão pela qual os hospitais têm políticas de que os bebés precisam ser vistos pelos pediatras não tem nada a ver com segurança, mas sim com dinheiro. No início dos anos 80, eles descobriram que os exames ao recém-nascido eram tarefas que não estavam a ser cobradas e então o Departamento de Pediatria aprovou políticas nos hospitais que diziam: “Todos os recém-nascidos têm de ser vistos por um pediatra”. Os hospitais concordaram e assim os pediatras ganhavam mais dinheiro. Cerca de 10 anos depois, a direcção do hospital passou a exigir e a cobrar por isso. Curiosamente, esta regra acabou por virar-se contra eles, pois as nossas clientes queriam ir para casa por exemplo às 10 da noite e o pediatra dizia que só estaria na manhã seguinte. Se as nossas clientes quisessem ter alta, tinham de o fazer contra recomendação médica, assinando um termo de responsabilidade. Claro que a companhia de seguros não gostava disso e depois ameaçava-se chamar os Serviços de Protecção da Menores, etc. Não tinha nada a ver com a segurança, eram só politiquices.

Então, primeiro proibiram as parteiras de trabalhar de forma autónoma, depois baniram os VBACs e depois os pélvicos. E sem razão nenhuma, porque não tínhamos tido nenhum mau resultado! No início de 2010 eu acompanhei 3 partos pélvicos e recebi um telefonema do chefe do departamento, que me disse que se eu acompanhasse mais algum parto pélvico era expulso da equipa. Eu respondi que era acreditado para o fazer, que tinha um papel assinado por ele em como o podia fazer e ele respondeu que não lhe interessava. Estávamos a fazer um óptimo trabalho, mas eram só entraves. Problemas pequenos despoletavam logo animosidade. Tratavam-nos de forma diferente, instituíram uma regra em que eu tinha de morar a 20 minutos do hospital, se uma das parteiras estivesse a acompanhar um parto. Eu vivia a 19 minutos do hospital, mas não acreditaram em mim, enviei-lhes a simulação pelo MapQuest. Pois arranjaram alguém do comité que veio até minha casa de carro para conduzir até ao hospital e confirmar quanto tempo demorava. No entanto, os médicos do hospital já podiam estar onde quisessem, no clube de ténis ou a jantar fora. Nunca se supervisionavam a si, apenas a nós, os profissionais que trabalhavam na casa de partos. Por fim, cheguei a um ponto em que fui aconselhado por bons advogados de que eu não teria um julgamento justo. As pessoas que me estavam a acusar eram as mesmas pessoas que me julgariam. Ia perder de qualquer maneira e ia custar-me muito dinheiro. E mesmo que ganhasse, tudo o que conseguiria era continuar a trabalhar numa instituição que não me deixaria trabalhar como gosto. E por isso, no Outono de 2010, deixei de ter prática hospitalar. Algumas colegas parteiras encorajaram-me e convidaram-me a vir assistir a alguns partos domiciliares. Eu nunca tinha estado num parto domiciliar e inicialmente ri-me e disse que não, que não estava interessado nisso. A maioria dos obstetras rir-se-ia. Eu estava mais confortável com certos serviços mesmo ao lado, como a unidade neonatal e a anestesia, pois é assim que somos treinados. Somos treinados em medicina como doença, em como algo pode correr mal a qualquer momento, em oposição ao modelo das parteiras, que confia na saúde e sabe que as coisas não correm mal à partida, se não se interferir com o trabalho de parto. Mas lá acabei por ir a alguns partos domiciliares e foi a melhor experiência da minha vida! Desde então, tenho estado sempre feliz com esta minha escolha. Olhando para trás, a única coisa que me entristece é ser o único a fazê-lo. E por causa das leis restritivas da Califórnia sobre o atendimento de parteiras nos partos domiciliares, fico preso aqui. Quando tenho partos pélvicos ou de gémeos não posso viajar, e quando tenho mesmo de ir a algum lado e eles entram em trabalho de parto, as mulheres acabam por ter de ir ao hospital fazer uma cesariana. O que já aconteceu várias vezes! Mas não se preocupem, porque eu já libertei a minha agenda para a segunda metade de Maio (risos).

Porque acha que existem tantas intervenções no parto hoje em dia?

Medo! É a forma como são treinados. Não sei como funciona em Portugal ou noutros países europeus, mas tenho a certeza que é relativamente igual. Os nossos médicos internos são treinados em obstetrícia de alto risco e consideram tudo como se fosse anormal. Olham para o nascimento como para uma patologia, como se alguém viesse tirar o apêndice, e não como se fosse uma função normal do corpo, tal como respirar ou digerir, na qual não precisas de fazer nada. Nenhum interno de obstetrícia fica sentado a observar uma mulher em trabalho de parto, sem fazer nada além de escutar e olhar. E quando vens para um parto em casa, isso é basicamente o que fazes. E não precisas fazer mais nada. E aprendes!

Ainda me lembro do meu primeiro parto em casa. Uma das minhas primeiras experiências com partos domiciliares foi com uma das minhas parteiras favoritas e quando a mulher começou a fazer alguns sons guturais, eu disse: “Será que deveria ir avaliá-la?” Nós não tínhamos avaliado durante todo o trabalho de parto e isso é estranho para um médico que sai de um hospital. Ela respondeu: “Não.” A mulher começou então a gemer um pouco mais alto e vinte minutos depois eu pergunto à parteira novamente “Devo avaliá-la agora?” E ela diz: “Não”. E então, cerca de meia hora depois, ela começa “ohhhggghhhh” e então a parteira olha para mim e diz: “Sim, agora podes avaliá-la”. E claro, ela estava com dilatação completa e no plano +3. Não havia razão para eu estar a colocar os meus dedos ali, mas foi para isso que fui treinado! Então, aprendes toda uma nova maneira de fazer as coisas. Se os nossos internos tivessem que aprender com as parteiras sobre o parto normal, se tivessem que ficar sentados um mês no bloco de partos e serem uma enfermeira parteira ou ir a alguns partos em casa ou em casas de parto, e apenas observar, seria uma tremenda, tremenda vantagem para eles. Mesmo que não tivessem que depois fazer algo deste género nas suas vidas profissionais, ainda assim saberiam e teriam mais respeito por essa opção. Uma das coisas que eu ensino e que não é ensinada, quando falo com médicos internos, o que não é muito frequente, e vê-se o queixo deles cair quando se fala sobre o parto normal dos mamíferos. Como é que uma fêmea de veado dá à luz? Elas encontram um lugar sossegado, sozinhas, e os outros veados não vêm avaliá-la e interrompê-la o tempo todo, e se estiver com fome, come, e se estiver com sede, bebe, e ninguém incomoda. Quando o bebé sai, o que acontece é que cai no chão. Então não é estéril. E ninguém corre para cortar o cordão, porque na Natureza ninguém separa o bebé da mãe. Os mamíferos não vão entrar em trabalho de parto se estiverem nervosos, então tudo o que fazemos à mulher em trabalho de parto é antiético, e não como a Natureza projectou ser para os mamíferos. Perguntamo-nos porque temos essas taxas de 30% de cesarianas, 85% de epidural e alto uso de oxitocina, e depois sentimo-nos seguros porque temos um bloco operatório no fundo do corredor para podermos dizer no fim: “Sim, acabámos de salvar o seu bebé!”. Bem, acabaste de salvar o bebé dos problemas que acabaste de criar.

Que sugestões pode dar às mulheres em termos de preparação para a gravidez e parto?

Aconselho todas as mulheres a, pelo menos, consultarem e considerarem os cuidados de uma parteira. Acho que é claro que podem ter uma consulta com um obstetra, mas depois que tenham uma consulta com uma parteira e que comparem, que vejam como se sentem. Em algumas coisas precisam de um Obstetra, noutras pode haver colaboração e há ainda outras coisas nas quais os Obstetras não precisam de se envolver. Encontrem um profissional que responda às vossas perguntas, que vos dê tempo. O tempo é uma coisa tão importante! Procurem informação de fontes fidedignas, pesquisando em sites como o meu ou como o vosso, com referências de filmes ou livros que recomendamos. E não vão ao Dr. Google! Não tirem as vossas informações dos grupos do Facebook. E se o vosso médico é o mesmo homem ou mulher que vos acompanha há anos, mas tem “um pé na porta”, está com pressa e sentes que as tuas perguntas não estão a ser respondidas, que não se lembra de ti de uma consulta para a outra, não sintas que tens de estar presa a essa pessoa. As pessoas gastam milhares num casamento, mas dar à luz, que é um dos eventos mais importantes da vida, pensa-se “este é o meu médico, isto é o que o meu cartão do seguro de saúde diz, por isso tenho de estar aqui”. Pensem nisso! Se formos às reuniões da ICAN (International Cesarean Awareness Network), todas as mulheres estão a chorar quando falam nas suas experiências de parto, porque sentem que não foram ouvidas ou que os seus médicos não as respeitaram. E elas carregam esse fardo para o resto da vida! E não há VBACs subsequentes ou outras coisas que possam apagar esse sentimento. Num momento tão importante das suas vidas, quantas mulheres realmente se sentiram bem com o seu parto? Claro que toda a gente adora o seu bebé, mas se perguntarmos às mulheres como foi a gravidez, como foi o parto, muitas dirão que não foram respeitadas e que não era assim que elas queriam que tivesse acontecido. Ouvimos estas coisas vezes sem conta. Por isso, precisamos dar um passo atrás e reavaliar a prioridade que a nossa cultura dá ao nascimento. Não fazemos do nascimento uma prioridade, mas deveria ser uma prioridade, porque é um daqueles eventos que vai afectar a mulher para o resto da vida.

Eu não tive aulas na Faculdade de Medicina sobre nutrição e amamentação, por exemplo. Nenhuma! Em quatro anos de internato. Acho que os médicos não recebem formação suficiente em amamentação, pois não consideram que essas coisas sejam do domínio da Obstetrícia. O bebé está cá fora, por isso já não é mais da sua responsabilidade. O bebé vai para o berçário, a mãe, se tiver um parto vaginal vai para casa um dia ou dois depois, e será vista novamente daí a seis semanas, a não ser que seja cesariana e aí pode ser vista daí a duas semanas. Mas no modelo das parteiras fazemos uma visita pós-parto no primeiro ou segundo dia a seguir ao parto, fazemos outra cerca de quatro ou cinco dias depois, fazemos outra duas semanas depois, e enquanto isso estamos a ter a certeza de que o bebé tem pediatra e toda a atenção de que necessita, estamos a pesar o bebé, a contar os xixis e os cócós, etc., coisas que eu, enquanto Obstetra, nunca tinha feito. Mas agora faço, sou um híbrido. (risos)

O que mudaria para melhorar a assistência médica ao nascimento?

Começaria por mudar a forma de ensinar a assistência ao parto à próxima geração de profissionais. Hoje em dia, 85% das mulheres terão partos que evoluem dentro da normalidade. No entanto, os obstetras especializam-se naqueles 15% de mulheres para quem não será assim. Só que eles estão a cuidar de 100% das mulheres, inclusive desses 85% de mulheres das quais pouco sabem, porque pouco aprenderam sobre partos normais. Não aparecem até serem chamados e quando são chamados espera-se que façam algo. Quando eu era médico no hospital, as enfermeiras chamavam-me, era esperado que fizesse um exame vaginal e se a mulher não estivesse a dilatar rápido fazer-lhe uma ruptura artificial das membranas ou então dar oxitocina artificial. Quando deveria entrar, olhar para o monitor e dizer à mulher ‘está a ir muito bem’, sentar-me depois num canto, observar durante dez minutos, dizer simplesmente ‘ok, está a correr tudo bem, voltarei mais tarde’. Os médicos não fazem isso, não foram treinados para não fazer nada. É difícil não fazer nada! As parteiras de antigamente diziam que a melhor coisa que podiam fazer era tricotar, porque quanto mais deixamos a mulher sossegada, melhor. Outra coisa importante para o futuro dos cuidados na assistência ao parto é a cooperação entre enfermeiros especialistas e médicos. Deixar de ver as enfermeiras parteiras como uma parte menor da obstetrícia, como uma profissão separada. Temos que começar a ver as parteiras como colegas especialistas, em vez de pessoal menos qualificado. Uma mulher pode consultar uma parteira e um médico durante a gravidez e se ela precisa de um médico ela é bem vinda no nosso consultório, mas deveria estar tudo bem para o médico se ela decidir ter um parto em casa. Enquanto não mudarmos a atitude do médico, mudando a forma como ensinamos os obstetras, teremos sempre esta espécie de ansiedade. O que é engraçado é que os médicos, para terem privilégios no hospital, têm que fazer urgências de vez em quando. E quando fazem urgências, podem encontrar mulheres que nunca conheceram, que não tiveram cuidados pré-natais, que consomem drogas, que estão de 26 semanas e em trabalho de parto, e vão cuidar dessas mulheres. Contudo, uma mulher de baixo risco, que apenas vem para receber uma epidural e oxitocina porque está exausta, é considerada de alto risco para as suas exigências. E por acaso teve excelentes cuidados pré-natais com uma parteira, mas isso é demasiado assustador. Consideram que assegurar o serviço de urgência é algo que devem fazer. E nem pensam duas vezes sobre isso, porque estão condicionados a acreditar que faz parte dos seus deveres, mas porquê? “Um longo hábito de não se pensar que uma coisa possa estar errada, dá-nos a aparência superficial de que está certa.” Porque é que fazem as coisas assim? Porque é a única forma que conhecem. .

Qual a melhor forma de comunicar riscos às grávidas e parturientes?

Considero que a melhor forma de o fazer é dar-lhes todo o tempo de que necessitem. As minhas consultas costumam durar 30 a 45 minutos. Como tenho muita confiança nas minhas competências, tenho muita confiança em comunicar às pessoas as competências que não tenho. Dêem-lhes o tempo que necessitam para falar sobre os riscos e benefícios desta opção, os riscos e benefícios daquela opção, e dêem-lhes todas as opções. Depois, deixem-nas chegar às suas próprias decisões, se conseguirem. Se quiserem ajuda com a tomada de decisão, tudo bem. Quero que tenham a experiência de parto que é suposto terem, não quero conduzi-las por um caminho e dar-lhes a experiência que eu quero que elas tenham. E, sabem, nem todas as experiências de parto vão ser como no plano de nascimento, mas quero que as pessoas se sintam confortáveis com as suas decisões e portanto dou-lhes tanto tempo quanto necessitem. E coloco-me à disposição durante 24 horas por dia, 7 dias por semana, portanto passo a vida a responder a questões. Tenho clientes a quem já dei alta há 6 meses que ainda me mandam SMS’s com perguntas, porque como as parteiras dizem, ‘és uma parteira para a vida’. Esse tipo de relação, não importa de que forma o bebé nasce, faz com que as pessoas tenham uma melhor experiência e uma melhor memória desse momento. É uma coisa tão poderosa para uma mulher, o nascimento das suas crianças, e penso que o modelo médico de assistência no parto não permite que assim seja.

Quais as suas expectativas em relação ao encontro Nascer em Amor 2018 e às formações ‘Parto pélvico: da teoria à prática?

Quero ensinar competências para assistir a partos pélvicos, para que as pessoas conheçam o que há de novo. Mesmo que não sejam autorizadas a acompanhar partos pélvicos, vão encontrar mulheres com bebés em posição pélvica nas urgências, ou em casa, e se tiverem as competências e souberem o que fazer, sentir-me-ei fantástico. Nós temos que saber o que fazer, nós somos o último recurso, somos o profissional, e nem sempre podemos fazer uma cesariana, mesmo no hospital. Quero rever a literatura, para que os profissionais de saúde possam falar com mais confiança acerca dos porquês de um parto pélvico e isso não ser tão assustador quanto se pensa. Quero falar que há muitas evidências sobre o parto pélvico que suportam o direito da escolha da mulher, o seu direito ético a escolher um parto pélvico vaginal. Toda a gente se refere ao ‘Term Breech Trial’ como uma peça conclusiva de evidência, que demonstra que não devemos fazer partos pélvicos vaginais. Mas qualquer pessoa que faça um pouco de pesquisa vai descobrir que o ‘Term Breech Trial’ é um monte de asneiras.

Só que isso é o que os médicos citam, porque satisfaz o seu desejo de justificar a sua prática. Nenhum médico quer chegar a casa à noite e dizer: “Querida, hoje fiz 3 cesarianas desnecessárias.” Não querem sentir-se assim, querem ter a sensação de que estão a fazer as coisas que são normais. Há colegas que se formaram ao mesmo tempo que eu, que sabiam acompanhar partos pélvicos e que já não o fazem. Nesta formação, quero também poder explicar como selecionar correctamente os pélvicos que podem ser vaginais e os que não devem. E quero que os formandos saibam como fazer as manobras necessárias com competência, conseguindo ainda reconhecer quando um bebé precisa de ajuda e quando devemos manter as mãos afastadas.

3 comentários em “Dr. Stu: “Podemos estar a alterar a espécie humana ao interferir tanto no Parto”

  1. Incrível! Onde posso encontrar um obstetra que pense desta forma em Portugal? Gostava muito que postassem recomendações de médicos e hospitais.

    1. Acreditamos que diferentes mulheres desejam diferentes coisas para o seu acompanhamento da gravidez e parto. Assim, recomendar este ou aquele profissional, seria sempre a nossa opinião e o nosso olhar. Porque pensamos assim, criámos esta publicação https://www.facebook.com/notes/associa%C3%A7%C3%A3o-portuguesa-pelos-direitos-da-mulher-na-gravidez-e-parto/sa%C3%BAde-da-mulher-recomenda%C3%A7%C3%A3o-de-m%C3%A9dicos-de-ginecologiaobstetr%C3%ADcia/1976768332608469/, infelizmente ainda pouco participada, mas cujo sucesso depende apenas de cada uma de nós, para dar voz às mulheres, na primeira pessoa e sem filtros.
      Em relação à assistência ao nascimento, poderá consultar em http://www.birthadvisor.pt as avaliações das mulheres em relação ao serviço que lhes foi prestado.
      Envolvam-se e contribuam para estas tribunas da opinião pública, por maior transparência nos cuidados de saúde materna. Apenas cada uma e cada um de nós o poderá garantir.
      Grande abraço
      Pela equipa APDMGP
      Isabel Valente

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